sexta-feira, 17 de abril de 2020

Na boca da noite


Tenho, acima de mim, um manto azul escuro bordado com estrelas de diferentes formas e tamanhos. As encaro como se elas também estivessem me encarando. Quem poderia dizer que não? São três da manhã, o sono foi mascarado por uma dose de sentimentos e sensações mais cedo. Talvez a madrugada seja mesmo para escrever. E fumar. E foder. Não nessa ordem, e não necessariamente é assim que deve ser. Às vezes, você só fuma; outras você fode e/ou fuma. Outras você sequer sabe o seu nome. Ao acordar eu era um, e agora, sem ter dormido, sou outro. É incrível como as coisas acontecem e como a gente muda, é mesmo do dia para noite. Eu nunca soube bem quem eu era ou muito menos quem eu estava me tornando. Vez ou outra essa dúvida me pica como uma cobra venenosa que não larga. Não adianta chamar resgate ou pedir socorro: eu preciso sentir na pele a dor de ser quem eu não sou. É uma dor necessária? Tudo é necessário quando se tem um propósito (desconhecido)
Sinto a minha pressão caindo, meu voo é em direção ao chão de terra batida. Antes de encostar em sua superfície, imagino a sua textura árida e fria tal qual um chão deve ser numa noite tão solitária e cheia de mim. É proibido fechar os olhos antes do impacto, mas aqui nós tentamos violar todas as regras. A única regra é: viole as regras. Há uma criança dentro de mim que sorrir a cada batida que meu coração pula em um momento de perigo em que me coloco conscientemente. Você foi um erro assim como eu sou um. Minha mente desfalece antes que eu consiga tocar o chão e saber se a imaginação acertou mais uma vez. Como sei que não estou acordado?
(Nem eu sei)
Me uno junto ao céu que tanto paquerei. Queria ser uma estrela, ter o brilho de uma estrela e ser apreciado como uma estrela. Dessa vez eu vou subindo, subindo e subindo. Olho para baixo e vejo um corpo sem vida e com os olhos vidrados no além. São olhos julgadores, frios e sem medo, parecem que sequer estão me enxergando mesmo eu estando em seu campo de visão. Aquele ser olha através de mim. E o que sou eu? Poeira cósmica recém-formada, um ser livre e consciente. Aquela casca terá que esperar, eu preciso voar o mais alto que eu puder antes que ela tome controle e me aprisione mais uma vez. Será que dessa vez a fuga será eterna? O que é eterno? Não sou capaz de julgar nada.
E antes que eu consiga atravessar a atmosfera, sei que estou fadado, mais uma vez, àquele que me libertou para essa viagem. Ele não era uma pessoa tão boa assim... Me mantinha em cativeiro para o seu próprio bem-estar. Qual era o preço de ser livre? A liberdade só existe em nosso pensamento. A liberdade aprisiona, essa é a grande verdade. Livre para? O que fazer com ela é que poderá, em algum nível, tentar descrever e definir o nosso ser. Sei que estou voltando, me sinto mais uma vez caindo, só que agora em direção ao meu porto não tão seguro. Antes que eu consiga tentar qualquer escapada, olho uma última vez para o horizonte estrelado e vejo uma estrela cadente.
Abro os olhos e consigo fazer um pedido. É importante me certificar de que estou vivo, de que não quebrei nada. Sinto meu pescoço, meus braços e as minhas pernas. Movimento as mãos e os pés; tento sentir a textura daquele solo e mais uma vez eu acertei. Estou mais uma vez lá e pronto para a próxima. Olho no meu relógio e forço bastante para enxergar que horas são e não consigo por conta da escuridão. Me levanto e inclino o meu punho em direção ao céu e a luz das estrelas é tão forte que consegue iluminar aqueles ponteiros quase enferrujados. Era irrelevante saber o horário, mas a força do hábito era maior. Não se pode ter um relógio sem a intenção de desenvolver vícios e manias. Rituais, manias e seus usos nada rotineiros. Alimento para o ego.
Eu ainda vivo.

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