Passeava
por entre as prateleiras enferrujadas e sem brilho que outrora ainda eram
lustradas por um mordomo teimoso e delinquente: o caráter das pessoas é algo
muito importante a ser levado em consideração. Ainda bem que o demitiu... ou ao
menos estava tentando. Quantas prateleiras haviam ali? Era impossível de saber.
Aquele era o quinto andar do edifício, e provavelmente outros ainda poderiam
brotar já que a vida é uma eterna incógnita. Foi caminhando lentamente até a
escada que dava acesso aos andares inferiores. Durante a descida - mais
exatamente do segundo para o primeiro andar -, começou a sentir uma dor
nauseante e desesperadora. Precisou até se apoiar no corrimão de metal que
estava frio como um gelo, caso contrário a vertigem o teria derrubado e acabado
de vez com aquelas doses paliativas de sofrimento. Era a hora de construir
novos andares.
Após
um tempo parado e respirando profundamente para evitar a crise de pânico,
conseguiu caminhar e chegar até o último andar - que na verdade era o primeiro.
Era confuso de entender apenas no início, e ele não gostava de explicar a
estrutura daquela obra para meros curiosos de plantão: Niemeyer dos
sentimentos. Olhou ao redor e o brilho emitido pelos livros nas prateleiras
quase o cegou: teve que fechar os olhos e ir os abrindo com calma para que se
acostumassem com tamanha explosão de cores e sons. Sons? Sim, sons! Não notou
no início, mas a sala também gerava sons. Considerava a primeira sala como um
organismo vivo e em constante evolução, era possível até sentir o cheiro de
tinta fresca vindo dela. O que as prateleiras guardavam? Livros e mais livros
escritos por ele com parceria de terceiros. Entretanto, aqueles eram livros
especiais. Eram ou foram? Provavelmente o segundo caso, dependeria do seu
estado de espírito. O ego do escritor é sempre preenchido e renovado quando uma
nova obra é escrita e apreciada pelo público.
Desceu
completamente o andar e começou a passar a ponta dos dedos pelas capas dos
livros. Cada capa possuía a foto de uma pessoa e seu respectivo nome. Alguns
com certeza eram apelidos pois não era possível alguém se chamar “coisinha”, “demônio”
ou muito menos “chaveirinho”. As fotos estavam tão nítidas que quase era
possível dizer que estavam vivas ou possuíam movimento como nos jornais do
mundo dos bruxos. Abriu um livro qualquer e começou a folhear sem procurar nada
em específico. Durante o processo, percebeu que mais da metade das páginas
ainda estavam sem conteúdo. Era possível adicionar folhas extras aos volumes,
mas essa estratégia fora pouco utilizada em todos os anos daquela construção.
Folheou até a última página escrita e teve certeza de que aquele livro já havia
terminado há umas 5 páginas. O guardou cuidadosamente para que seu estado
físico continuasse íntegro pois sabia que era necessário cuidar do que era seu,
independente de ainda fazer uso ou não daquilo. Uma boa leitura sempre é
lembrada.
Não
tendo mais nada o que fazer nesse cômodo, foi em direção da porta para se
distanciar daquilo tudo. Esse momento é curioso e nem ele saberia exatamente
como explicar, mas o seu corpo se transformou numa chave. Como dono e detentor
da chave mestra, ele era, de fato, a chave. Lá fora o horizonte estava nublado
com raios de sol tímidos. Puxou todo o ar que pôde para dentro dos pulmões e
sentiu que poderia explodir de gratidão. Foi se distanciando da construção e só
olhou para trás uma única vez. O prédio que acabara de sair tinha um formato
diferente das construções normais: era um coração. Disposto a construir novos
andares, deixou um aviso na placa que encontrou quando fez o movimento e
encarou a construção: “estamos de férias, mas também em obras! ”.
Com
toda a coragem que havia dentro de si, tomou o seu rumo.