quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Em obras

0 trocas

Passeava por entre as prateleiras enferrujadas e sem brilho que outrora ainda eram lustradas por um mordomo teimoso e delinquente: o caráter das pessoas é algo muito importante a ser levado em consideração. Ainda bem que o demitiu... ou ao menos estava tentando. Quantas prateleiras haviam ali? Era impossível de saber. Aquele era o quinto andar do edifício, e provavelmente outros ainda poderiam brotar já que a vida é uma eterna incógnita. Foi caminhando lentamente até a escada que dava acesso aos andares inferiores. Durante a descida - mais exatamente do segundo para o primeiro andar -, começou a sentir uma dor nauseante e desesperadora. Precisou até se apoiar no corrimão de metal que estava frio como um gelo, caso contrário a vertigem o teria derrubado e acabado de vez com aquelas doses paliativas de sofrimento. Era a hora de construir novos andares.
Após um tempo parado e respirando profundamente para evitar a crise de pânico, conseguiu caminhar e chegar até o último andar - que na verdade era o primeiro. Era confuso de entender apenas no início, e ele não gostava de explicar a estrutura daquela obra para meros curiosos de plantão: Niemeyer dos sentimentos. Olhou ao redor e o brilho emitido pelos livros nas prateleiras quase o cegou: teve que fechar os olhos e ir os abrindo com calma para que se acostumassem com tamanha explosão de cores e sons. Sons? Sim, sons! Não notou no início, mas a sala também gerava sons. Considerava a primeira sala como um organismo vivo e em constante evolução, era possível até sentir o cheiro de tinta fresca vindo dela. O que as prateleiras guardavam? Livros e mais livros escritos por ele com parceria de terceiros. Entretanto, aqueles eram livros especiais. Eram ou foram? Provavelmente o segundo caso, dependeria do seu estado de espírito. O ego do escritor é sempre preenchido e renovado quando uma nova obra é escrita e apreciada pelo público.
Desceu completamente o andar e começou a passar a ponta dos dedos pelas capas dos livros. Cada capa possuía a foto de uma pessoa e seu respectivo nome. Alguns com certeza eram apelidos pois não era possível alguém se chamar “coisinha”, “demônio” ou muito menos “chaveirinho”. As fotos estavam tão nítidas que quase era possível dizer que estavam vivas ou possuíam movimento como nos jornais do mundo dos bruxos. Abriu um livro qualquer e começou a folhear sem procurar nada em específico. Durante o processo, percebeu que mais da metade das páginas ainda estavam sem conteúdo. Era possível adicionar folhas extras aos volumes, mas essa estratégia fora pouco utilizada em todos os anos daquela construção. Folheou até a última página escrita e teve certeza de que aquele livro já havia terminado há umas 5 páginas. O guardou cuidadosamente para que seu estado físico continuasse íntegro pois sabia que era necessário cuidar do que era seu, independente de ainda fazer uso ou não daquilo. Uma boa leitura sempre é lembrada.
Não tendo mais nada o que fazer nesse cômodo, foi em direção da porta para se distanciar daquilo tudo. Esse momento é curioso e nem ele saberia exatamente como explicar, mas o seu corpo se transformou numa chave. Como dono e detentor da chave mestra, ele era, de fato, a chave. Lá fora o horizonte estava nublado com raios de sol tímidos. Puxou todo o ar que pôde para dentro dos pulmões e sentiu que poderia explodir de gratidão. Foi se distanciando da construção e só olhou para trás uma única vez. O prédio que acabara de sair tinha um formato diferente das construções normais: era um coração. Disposto a construir novos andares, deixou um aviso na placa que encontrou quando fez o movimento e encarou a construção: “estamos de férias, mas também em obras! ”.
Com toda a coragem que havia dentro de si, tomou o seu rumo.



segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Decodificando

0 trocas
É tão irônico se abrir a esses novos vícios em busca de curar problemas internos antigos. Experimentar novas drogas pra entorpecer a dor de ser quem eu sou e tomar o controle da minha vida. Não àquelas drogas que eu comecei a pegar abuso e que tanto me fizeram entrar num círculo sem fim de tentativas de fuga da tristeza e da dor. Não ao que sempre te incomodou quando você foi a minha luz e me fez enxergar além daquela fumaça pesada e carregada de um cheiro que afastava a tua boca da minha. Agora talvez seja a hora de tratar quimicamente todos os meus neurônios que estão doentes, e é ruim demais pensar em me jogar nisso. É ruim, é cômico e parece punitivo! Talvez as conversas de uma hora com um profissional pudessem dar um jeito, mas eu já tentei, você sabe. Posso não ter tentado tanto, esse é o caso de abrir mão de outras coisas e focar em me curar. Eu era bom em te amar, tão empenhado nisso quanto a querer entupir meu organismo dessas coisas. Do meu jeito, não tão certo e nem aquilo que você esperava de um homem ideal, mas sempre carinhoso e gentil. E o teu amor era a minha garantia de viver sempre nessa onda gostosa de tirar o fôlego. Acabei de ligar e marquei a consulta. Meu coração está com medo.
Quando aqueles comprimidos caírem na minha boca, irei imaginar que você segura a minha mão. Eu vou chorar num mix de tristeza e alegria.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Uma nova esperança: o meu último adeus

0 trocas

Antes de começar, é necessário informar que o final desse relato já nos é dito agora: eu morri. Caso não queira saber como foi o meu último dia e todas as minhas motivações, não continue. Todo conteúdo insensível é de total autoria do autor.

Sempre me preocupei demais. Demorou bastante tempo até conseguir encontrar o motivo disso tudo: ansiedade. Ansiedade essa que me agita e me desfoca de toda e qualquer atividade séria que exija os meus neurônios funcionando de uma maneira racional. Parece procrastinação, mas esse sentimento de não conseguir focar sempre foi um dos meus grandes problemas. E é nesse momento que quem tem um pacote fechado com a depressão, síndrome do pânico e ansiedade sofre. A dor mental chega a ser tão forte que ela transcende até me atingir fisicamente. Quando que tudo isso começou? Já desisti de buscar explicações. Tudo sempre esteve em seu lugar, tudo sempre está ali ou aqui, basta saber como irrigar, cultivar e esperar florescer. Nem sempre são coisas boas. A infância é um momento de fundamental importância e nem os adultos sabem disso. Me deparei com monstros em toda caminhada, e boa parte deles nasceram nos meus primeiros anos de vida. Não há culpados.
A busca por moldes socialmente aceitáveis é uma jornada do herói, em sua essência, fadada ao fracasso. Nesses casos, não há a possibilidade do sucesso e o final é premeditado. Me perguntei por muito tempo se eu era uma pessoa socialmente aceitável porque nunca me considerei que fosse, não importava o que eu fizesse. A tentativa de melhorar, de buscar ser o melhor mesmo com todas as adversidades que o mundo nos impõe, só me mostrou ainda mais que o ser humano não valoriza o espírito, mas sim a carne e os bens materiais. Meu pensamento sempre foi a minha maior arma e também a minha maior prisão. Pensar que não tenho um filme, comida ou cor preferida, sei lá, me assustava muito. Eu queria ser normal. É tão pequeno para alguém mentalmente saudável ou que não passa pelo mesmo, mas é uma zona de caos pra quem o sente. Me libertei disso pensando que: não devo me limitar a nada! Que gostosa a vida é quando a gente não se resume unicamente a uma só coisa, a um só sabor, a uma só visão. Já imaginou o quanto a gente deixa de ganhar por não experimentar diferentes sensações pela cegueira e fanatismo em uma só “coisa”? O pensamento é uma prisão. O nosso espírito é maior e mais importante do que tudo que podemos imaginar. Alimente e cuide dele enquanto se é possível. O aspecto físico, espiritual e mental devem ter um equilíbrio.
Isso tudo aqui era para ser uma carta de adeus, mas creio que fui mais prolífico do que saudosista. E é exatamente por esse motivo que me retiro pela última vez. Se quiser saber sobre mim, procure o meu patrimônio na internet ou fale com quem era próximo. Serão opiniões divergentes que convertem prum único caminho, isso eu sei. A luta de verdade acontece quando estou só comigo mesmo. Esses embates me dão mais sofrimento do que vitória, mas sempre usei isso como motivação para seguir. Se tu passa por algo assim, desejo força para transformar essa dor em energia. Um dia as coisas funcionam, nem que sejam a base de ódio. Um até logo.

A carta de adeus acabou e agora iremos começar o relato da minha morte. Sei que você estava curioso para isso, mas segura essa ansiedade porque será mais cru do que você imaginava. Cortamos os gastos e os custos, o que impossibilitou uma produção estilo Hollywood. No final, a morte é mais intrínseca do que parece.

Era uma hora que não era dia e nem era noite, talvez pudesse ser o momento em que os mortos retornam do seu mundo e assombram os vivos nos filmes de terror. Até então, a única forma de vida humana ali presente era de cinco colegas que haviam se reunido pra andar de skate, patins e bike: que geração fitness, nunca consegui acompanhar. O riso era fácil e o suor começava a brotar pelos poros dos jovens. A chegada D’eles foi tão repentina quanto ao evento final desse enredo: enquanto os cinco se divertiam, um grupo de ******** desceu de um carro e saíram em disparada em suas direções. Eram silenciosos, mas extremamente mortais.
- Quem são aqueles ali?
- Puta que pariu, são os ********! Caralho, a gente se fodeu!
- Só se escondam, porra!, falou um dos jovens enquanto molhava as calças.
Cada um correu desgovernadamente em alguma direção diferente em busca de se esconder. Talvez algum não tenha conseguido correr, mas não voltaremos lá pra conferir. É difícil de explicar a fisionomia deles, sabe? Só sabe quem sobreviveu a um ataque, e a verdade é que ninguém nunca sobrevive. De qualquer forma, aquele menino estava disposto a sobreviver. Ele seria o primeiro! Saiu em disparada por uma rua paralela. Quando chegou próximo a um cruzamento, seu coração pulou uma batida quando novos ******** apareceram. Sem muita alternativa, optou por pular uma cerca cor de merda de gato com dor de barriga. Não teve tanta dificuldade pra fazer isso porque amava praticar coisas radicais. Ao pular, caiu num quintal que havia uma varanda aberta e sem portão. Se arrastou silenciosamente até ficar atrás da parte da varanda em que as grades seriam colocadas. Respirou aliviado porque talvez fosse sobreviver. Agora que já estava seguro, olhou pra frente e viu a porta de entrada da casa e uma janela. A janela estava aberta e nela um homem gordo e careca estava virado concentrado olhando pra dentro da casa.
Não entendeu porque o homem não o havia o escutado quando ele entrou na varanda e muito menos quando ele o chamou. Um segundo após ter pedido socorro por três vezes para entrar na casa e se esconder junto ao homem, o rapaz careca se virou pra derrubar as cinzas do cigarro na varanda e viu aquele homem ali no chão. A troca de olhares foi quase capaz de gerar eletricidade. O jovem entendeu que aquele homem nunca havia sido parcimonioso, talvez fosse um ex militar aposentado devido a invalidez. Era realmente isso, sabe? O gordo careca era surdo e estava sem seus aparelhos auditivos. Talvez até com os aparelhos ele não teria ouvido o jovem o chamar. Foi ferido numa operação militar e ficado assim pra sempre.
Sem pensar uma vez sequer, o gordo careca meteu a mão dentro da casa, creio que em uma bancada próximo da janela, e puxou uma arma. O menino entendeu ali que a sua maior ameaça não eram mais os ********, mas sim aquele homem cruel e impiedoso. O homem é lobo do próprio homem. O menino soube antes mesmo que acontecesse: ele iria morrer ali. O gordo careca disparou três vezes e todos os tiros dilaceraram as entranhas daquele pobre coitado. Não sentiu dor, ainda bem. Os sentidos foram se perdendo e os olhos foram fechando. Nunca havia desmaiado, mas achava que a sensação era que nem a de morrer. Fechou os olhos e foi grato por aquilo. Tudo acontece como deve acontecer. É uma puta ironia.
Aquelas balas não tiraram a sua vida, mas o deram uma nova oportunidade pra fazer tudo diferente. O recomeço nascia ali.




terça-feira, 21 de maio de 2019

A maré

1 trocas
O escuro sempre me trouxe segurança: havia o frio na barriga, mas a felicidade em vencer as criaturas que habitavam aquele espaço desconhecido era gratificante. E eu sempre buscava sentir essa sensação. Crianças são bichos estranhos desde sempre, nunca desacreditei nisso. A questão é que a infância passou e levou com ela esse sentimento de vitória, o que prova ainda mais o quanto ser adulto pode ser um ato suicída. Deixo aqui, em especial, felicitações aos atores que estão em constante contato com situações improváveis e de risco. Pensei que atuar seria fácil, mas não há nada melhor do que encarar tudo como telespectador, e talvez essa seja a grande sacada de tudo: nunca somos somente uma das partes.

Hoje, quanto mais escuro fica, mais me vejo sufocado: pânico, ansiedade e impotência. Todos esses sentimentos causam dor e fazem a alma ansiar por uma dose instantânea de puro ecstasy pra morrer em paz. É uma luz temporária e funcional, só que nunca foi e nunca será a resolução pra todo esse caos. A resposta final eu já sei, mas a teimosia insiste em entrar em ação e não me deixar desacreditar que posso continuar atuando um pouco mais porque assim que eu piscar, o maior holofote do mundo irá me atingir num grau nunca antes visto.

A atuação não pode parar porque o telespectador sempre estará ali dando o seu apoio moral. O suporte que esse equilíbrio gera é o que torna tudo tão gracioso e fatalmente belo, mostrando o reflexo da podridão que habita dentro de nós mesmos. Talvez algum dia eu me vire do avesso e enxergue tudo o que há lá dentro - isso é, se houver -, e me surpreenda. Até que isso ocorra, a gente segue pilotando essa moto sem medidor de gasolina no escuro. 
O escuro me sufoca na mesma intensidade que me fortalece. O medo dele sempre foi real, agora eu sei.