terça-feira, 4 de outubro de 2016

Checklist

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Banhada pela luz do sol que transcendia o vitral lápis-lazúli da loja, sentia-se aconchegada pela sensação térmica amena. Olhou para a xícara entre as duas mãos, segurando-a bem firme como se até mesmo uma breve oscilação na respiração pudesse destruí-la. Mexeu o cappuccino uma última vez e, lentamente, levou a xícara em direção aos lábios pintados de lilás. Deu um breve gole; afastou o conteúdo até a altura do queixo, a respiração lenta, mas firme, fazendo os óculos ficarem embaçados e diminuindo o seu campo de visão.

Quando tudo entrou em foco, viu um vulto vindo em sua direção diretamente do outro lado da vidraça com a logo da loja desenhada. Deu um grito breve e abafado. Os poucos clientes que estavam na loja, olharam rapidamente para ela com olhares reprovadores e voltaram pros seus afazeres. O garçom, que estava a meio metro de distância, ficou estático e arregalou os olhos pra ela. Dirigiu-se até mesa e a serviu com a terceira xícara de café da tarde.

- Quer virar mais uma noite, mocinha? E ofereceu um sorriso senil e complacente.
- Ah... Me desculpe!!! Acabei me assustando com a sua sombra. Eu pensei que fosse alguém lá fora...
- Tudo bem! Só tome cuidado com essa cafeína, ou alguém passará a noite contando carneirinhos. Deu a sua melhor piscadela enquanto já se dirigia ao balcão novamente.

Levou a xícara até a altura do nariz e inspirou aquele aroma forte que tanto amava. Deu um breve gole, levantou-se e deixou o dinheiro (com aquela gorjeta) na mesa. Antes de sair da loja, ficou observando o catasonho que tanto gostava: as três penas azuis balançavam lentamente quando alguém passava próximo ou abria a porta. No centro do catasonho, havia uma ametista. Desejou sorte e lucidez, principalmente para os momentos críticos como aquele que estava vivendo.

O entardecer já caia àquela hora. Na vastidão daquele universo de pessoas e prédios e carros, o calor ainda era presente. As pessoas iam e vinham conversando, mas muito pouco era entendível. Carros buzinavam. Pessoas se batiam umas nas outras e seguiam o fluxo. A mesma velha história.

Parou na faixa de pedestres. O semáforo marcava 120 segundos para fechar. As pessoas começavam a chegar pra atravessar a rua. 110 segundos. Um empurra-empurra. 100 segundos. Carros indo e voltando. 90 segundos. Um carro tocando uma batida psicodélica que misturava Kavinsky com Pink Floyd, encheu o ar com riffs mixados e gritos de animais sintetizados. 80 segundos. A música invadiu a sua cabeça. 70 segundos. Uma leve vertigem a acometeu. 60 segundos. Tudo girava. 50 segundos. Olhou pra cima e viu o sol se pondo, deixando a mostra, entre os prédios, os seus últimos raios ultravioletas que causariam câncer de pele a daqui uns 99 anos. 40 segundos. Os letreiros eram acessos nas fachadas dos prédios e lojas. 30 segundos. Grandes palavras saltavam em sua direção, como se fossem golpes teleguiados. 20 segundos. Tudo estava parado ao seu redor. 10 segundos. Ela estava voltando no tempo e todos seguiam em câmera lenta. O semáforo ficou vermelho.

Recobrou a consciência com um toque em sua mão: uma criança a cutucava e apontava para o semáforo em vermelho. Não sabia quem era a criança, mas a agradeceu mentalmente por tê-la acordado. Andou por dez minutos, atravessando as 7 quadras que a separavam do seu café preferido do bairro. Chegou até o prédio e apertou o interfone por dois segundos.

- Sou eu, José.

Ouviu a famosa estática acompanhada do "click" do portão se abrindo. Subiu os três lances de escadas na corrida, parando pra descansar somente na frente do seu apartamento de número 4. Aquele prédio era curioso... A ordem dos apartamentos era decrescente pra quem subia. Não entendia o motivo, mas por incrível que pareça, o 4 era o seu número da sorte. Girou as chaves duas vezes e adentrou.

A penumbra gerada pela luz da lua que entrava pelas grades da janela e pelo abajur de gato que enfeitava a prateleira de livros, era perfeita. Entretanto, era um ambiente pesado. Tudo ali estava uma bagunça, bem como o caos que havia dentro de si. Forçou-se a não pensar em nada, evitando o cansaço mental. A cama, mesmo cheia de livros, roupas e lanches rápidos, era mais do que convidativa. Decidiu escrever.

Sentou-se na sua mesa de estudos. Ligou o abajur de gato que era acesso quando alguém puxava a sua pata em formato de coração-de-algodão-doce. A luz era mais do que suficiente. Passou a mão pela coleção de livros... Olhou a nota colada na capa de seu diário. Lá, havia um breve check-list que encontrou na internet e levava pra vida toda: 

Cuidando de si mesmo–

  • 1) Faça algo, todo dia, que a deixe feliz;
  • 2) Desenvolver uma visão e metas; saber o que você quer e o motivo, e sempre relembre isso;
  • 3) Aumentar o espaço entre o quanto você carrega e os seus limites.


Marcou um X na número 1 e abriu o diário. Folheou até a página 67 que ainda estava em branco, e começou a escrever.

domingo, 21 de agosto de 2016

Abrigo

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Não tem quando entramos em um ambiente escuro e vamos tateando direto em busca do interruptor? É um instinto mais do que natural buscar enxergar as coisas à nossa volta. O mais engraçado é que, quando agindo sob esse impulso, entramos e acedemos a luz que já estava acessa, ou seja, a apagamos. Ficamos rindo disso minutos depois tentando entender a peça que o nosso córtex visual acabou de nos pregar.


Aquele dia estava pacífico. Deitada e imersa nos pensamentos, podia até ouvir o feno passando e levando consigo pensamentos para lá de indesejáveis. Se pensar demais era um problema, em qual momento não pensar em nada se tornaria um? Um mix de anseios temperados com receios, paranóias e outras dúvidas a assolava.

Criou coragem e foi tateando em busca de apoio pra levantar. Ela sabia... Tudo estava revirado àquela altura do campeonato. Levantou e conseguiu tatear até a vitrola que havia ganhado num amigo secreto de natal da família. Naqueles dias, esquecia todos os problemas e conseguia ter um pouco mais de esperança pra seguir firme. Bem lentamente, colocou o vinil para tocar e, com uma espécie de batida abafada inicial, os sons invadiram a sua cabeça.

Primeiro foi a vez de Fleetwood Mac e o seu charme inconfundível pra falar de amor. Cantou junto com os olhos bem apertados pra quase entrar no mundo imaginário que a melodia criava. Enrolou um pouco, não sabia o trecho! O importante era se deixar levar... Will the landside bring you down? Mudou o disco após tê-lo ouvido, pelo que contou, duas vezes. No próximo, Renato Russo espalhava otimismo cantando que em vez de luz, havia tiroteio no fim do túnel. A vida é cruel. Sorriu amargamente.

Desligou tudo. O silêncio era tão alto que a incomodava. Aquela estática mental, aquele som abafado e zumbido, eram tudo o que precisava. Pensar, seja lá no que fosse, nem cogitava. Por quê? O pensamento atrai e dá forma aos nossos maiores medos. Levantou e tocou a maçaneta. O toque gélido a fez recuar instintivamente. Por fim, abriu a porta e atravessou o corredor até a sala. Foi invadida por um forte cheiro de maresia antes mesmo que chegasse até a porta que a levaria para fora daquela prisão.


Lá fora, os raios do sol refletiram um caleidoscópio ao encontrarem os seus olhos. Por um instante, sobrou só uma vertigem embalada pelos sons das ondas quebrando nas rochas do penhasco. Apertou os olhos ao máximo, e nada notou de diferente. Lentamente, levou as mãos ao rosto... Tudo entrou em foco como num devaneio das brisas de verão.

sábado, 9 de julho de 2016

O tique-taque mundo

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O celular berrava desde 10 pras 05:00 da manhã, porém o despertar somente aconteceu uma hora mais tarde. A cabeça já não latejava mais, porém era possível sentir a estática mental. Os dois litros de vinho barato da noite anterior ainda percorriam as suas entranhas. Olhou na tela do celular: estava atrasado. Tenho que levantar hoje?

O banho rápido e gelado o trouxe um pouco de volta a realidade. Conseguiu uma carona até metade do destino semanal. A estática mental continuava e, juntamente com um grito de socorro apertando a garganta, só restava seguir imerso em pensamentos autodestrutivos.

Introspectivo em seu acento no ônibus, continuou o velho e matinal ritual de leitura. Lia sempre que podia, principalmente dentro dos ônibus pra matar os pensamentos cinzentos. Decorrido algum tempo, deu uma pausa: tirou os óculos, esfregou os olhos profundamente e olhou o fluxo pela janela.

As coisas lá fora passavam num borrão de cores vivas e brilhantes devido ao forte sol. Era engraçado pensar que a vida estava passando de forma igual para todos, mesmo para aqueles que não estavam em movimento, mas que faziam parte dos vultos vistos por dentro do ônibus. E, indo além, cada borrão estava travando lutas internas contra demônios e vampiros reais.


Os demônios estão entre nós, assim como os vampiros que não possuem consciência de si próprios e nem de seus reflexos  pois nada lhe causam. Se tudo é uma questão de perspectiva, considerava o pensamento válido.

De súbito, um pensamento o acometeu: estava muito atrasado. Rapidamente, olhou para o relógio no braço esquerdo e teve certeza que o seu coração havia pulado uma batida: o relógio estava parado. O que havia de intrigante nisso? Estava avançado num espaço-tempo paralisado havia horas e não percebeu. Às vezes o tempo passa e a gente nem vê... Ou seria o inverso?

Somos telespectadores. As TVs estão desligadas. Apontam espelhos invertidos para nós. Vemos tudo que não queremos. Sufocamos no nosso próprio apelo.