segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Cenários

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Cena I - Fuga

A amargura era o seu prato preferido.
No clarão da chuva torrencial da madrugada, o vulto ectoplásmico fundiu-se a ventania desenfreada e como num breve insight, saiu voando sem rumo. Cansado da perseguição, O Menino Que Chorava Por Um Olho Só acabou caindo no seu próprio abismo de solidão e dor. Enquanto virava-se contra o negro horizonte que descarregava a sua fúria incessante naquele infeliz coração enjaulado, O Menino cuspia uma mistura de sangue e barro juntamente com o gosto intenso e amargo de toda a bile que poderia existir no mundo. Aquela luta estava encerrada e, mais do que ninguém, eles sabiam disso. O Menino chorou o seu egoísmo pelo único olho que tinha.

II - Paralisia

Pintava quadros e ria deles.
Olhando para a aurora sobre o ombro nu, a sua visão periférica vislumbrou fantasmas mortos há muito tempo. E lá longe, todos eles começaram a cantar uma melodia clássica em uníssono. A Menina Que Não Tomava Parte conhecia e amava cada som que era produzido, mas como numa amnésia instantânea ou como consequência duma sequência de viagens temporais, não recordava-se de nada. Quando deu-se conta do transe, daquela sensação de encarceramento físico e mental em que encontrava-se, juntou tudo que tinha dentro de si para fugir daquele lugar e nunca mais voltar, mas foi tudo em vão. Os quadros riram dela.

III - Divisão

Seus movimentos eram graciosamente calculados.
Nem sempre, mas boa parte deles, poderíamos assim dizer. Compartilhar aquele corpo, o corpo dele, era uma guerra-sem-fim. O Menino Dividido E Seu Irmão Gêmeo Absorvido eram famosos naquela região. Um dia um dizia que era "isso", noutro dia o outro diria que era "aquilo" e, como era natural acontecer, viviam nessa eterna contradição. Por fora, as pessoas diziam que era a Sociedade. 

domingo, 19 de janeiro de 2014

Um breve relato (sem aspas) de alguém ainda não identificado

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Lá estava eu, deitado na praia, enquanto as ondas quebravam no vento e jogavam respingos no meu corpo. Quando elas batiam no meu rosto e se juntavam com as minhas lágrimas, davam uma sensação que aquecia o coração. No horizonte, tão distante, tão amplo, belas figuras eram formadas com as nuvens-de-algodão-doce-nublado. Ainda lembro do elefante sem orelha e do corpo humano sem cabeça. Quando quis me levantar, lembrei o motivo de ter sentindo uma paz enquanto estava isolado ali, só com os pássaros planando lá longe e as nuvens brincando de formar coisas sem sentido. Senti uma breve vertigem e foi exatamente nesse momento em que a ferida recomeçou a doer. O meu paradigma final.

Essa ferida, essa que gangrenou o núcleo da minha alma, me consome como se tivesse sido amarrada à minha alma num tempo que já não sei se existiu. De tão atemporal que é, ainda luto em busca de respostas, mas sem muito sucesso. E no final, sempre me entrego aos mesmo caprichos, aos mesmos vícios duma rotina martirizante. Já não me importo tanto com despedidas e o que me assusta, é não me assustar com isso. Chegou um momento em que de tanto reprimir, mesmo que inconscientemente, as palavras ficaram gravadas nas cordas vocais. Elas nunca foram pronunciadas e, pelo andar do barco, nunca serão.

Finalizo aqui, num barzinho no centro da cidade, tomando algo que não sei o nome pra curar, mesmo que por um breve momento, essa ferida que me atormenta. Nem mais o meu nome eu sei. Amo essas brechas temporais, me esconder lá enquanto o circo pega fogo e a ferida parece não existir. 

Me sabotei.