segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Outros I

A jornada da vida é repleta de mortes e renascimentos que nos colocam em diversos papéis, alguns bons e outros nem tanto. É mutável e não tão fácil de modelar. Essa resiliência, contudo, ocorre gradativamente de acordo com o mundo em que vivemos. E sim, existem vários mundos. É uma vastidão de pessoas, um bocado de (res)sentimentos e mentes prontas para semear aquilo que melhor lhes convém. Sim, algo conveniente para o momento, pois nem todos nesse mar cheio de ilusões enxergam o bote salva vidas.

A personagem de hoje aprendeu das piores formas o valor da essência. E não foi por falta de aviso, mas de bom senso.

Renegados

Perdi meus pais antes que pudesse realmente tê-los: nunca tive a presença dum pai e, minha mãe foi levada pelos vícios da vida. É decadente olhar para a pessoa que nos deu tudo na vida e vê-la engasgada com o próprio vômito, os olhos saltando para fora das órbitas num grito sufocado na garganta. Nesse momento, eu cruzei a linha tênue entre a vida e a morte. Sem querer, fui parar no inferno.


Diante daquele sujo espelho de motel frequentemente usando por caminhoneiros, Luzia estava parada, tentando procurar alguém dentro daquele corpo que um dia fora saudável. Era o segundo programa da noite, mas não teve tanta sorte quanto no primeiro. O cliente, um filhinho de papai supunha, a havia espancado após o ato sexual. Ele estava drogado, ela sabia, mas precisava urgentemente daquele dinheiro, duma forma ou doutra. Um dos olhos estava roxo, enquanto o outro estava fortemente vermelho. Na pele branca, suas mãos ainda estavam marcadas, quase como sinais. Ao menos ele tinha pagado o combinado. Seus clientes raramente eram limpos com ela e, quando alguém a chamava para o trabalho, sabia dizer se aquele era boa gente ou não. Às vezes, como hoje, ela errava. Dentre os clientes, as mulheres também estavam incluídas. Essas, por sua vez, eram mais calmas e queriam aventuras fora do casamento. Diziam que estavam em crise com o marido, que ele estava chegando tarde em casa e essas outras coisas paranoicas de final de relacionamento. Lavou o rosto com a água fria da torneira, tentando despertar daquele pesadelo em vida. Vestiu suas roupas e saiu daquele quarto sujismundo.

Antes de ir para o lugar em que dormia, precisou passar na drogaria para comprar algum antibiótico para Nena que estava com uma febre muito forte. Nena era sua filhinha, de apenas 4 anos de idade. Perguntou o que era bom para gripe e febre, então o farmacêutico empurrou algumas aspirinas e um xarope. Malditos profissionais de merda, pensou, quando saiu do estabelecimento. Andou apenas duas quadras para chegar no quarto alugado em que tentavam viver. Abriu a porta e entrou, fazendo o mínimo de barulho possível para não acordar Nena. Ela estava dormindo, agarrada com seus bonecos B1 e B2 que tinha encontrado no lixo perto da esquina de casa. Quando viu aquela cena, sentiu uma pontada de dor e culpa dentro de si. Tudo isso não era culpa dela, ela tentava processar, mas era muito difícil suportar essa realidade. Queria ser rápida, pois queria garantir ao menos o café da manhã e o almoço da filha no próximo dia. De forma carinhosa, acordou a filha e disse que ela precisava tomar os remédios para ficar melhor e que  iria visitar um amigo, mas que estaria em casa dentro de meia hora. A pobre e inocente criança obedeceu e assim que Luzia estava indo em direção ao banheiro, Nena disse: - Te amo, mamãe. Aquela frase foi pior que qualquer coisa que tivesse suportado naqueles anos, foi como uma flecha certeira na ferida não cicatrizada. Entrou no banheiro e foi até o armário e pegou algo enrolado num pano azul. Desembrulhou tudo e encontrou sua seringa e uma ampola de cocaetileno. Colocou a substância na agulha e antes de aplicar, amarrou o pano acima do pulso, para uma boa pressão sanguínea. Quando olhou para os braços em busca duma veia sã, soube que era difícil encontrar alguma ali. Seu braço estava todo marcado pelas picadas de agulha durantes suas crises de abstinência. Encontrou algo, não sabia se era veia ou artéria, mas mesmo assim aplicou. Guardou tudo no mesmo local e saiu de casa.

Lá fora as luzes brilhavam contra o horizonte negro da cidade. Eram duas da madrugada e tudo parecia deserto, a não ser por aqueles de hábitos noturnos. Parou diante uma faixa de pedestres e olhou para o sinal. Estava vermelho, então poderia passar. Não havia sinal algum de carros na redondeza. Quando chegou na metade da faixa, ouviu sirenes que julgava ser da polícia. Foi então que viu um carro em alta velocidade vindo em sua direção. Luzia não sentiu as pernas no momento. Depois que o carro a pegou e a fez voar para longe, não sentiu mais nada.

2 trocas:

Júnior Rodriguez disse...

OMG! Ela morreu?! =O COMASSIM?! SURFISTINHA, Bruna! OMG! PUBLICA LOGO O PRÓXIMO!

Me amarrei na profundidade!

Almeida disse...

É possível sentir o cheiro da pele marcada pela necessidade, o gosto amargo do arrependimento, o olhar vazio, sem esperança, a e necessidade se apegar a tudo, mesmo quando o tudo não é muita coisa. Por alguns instantes fui obrigado a ser telespectador e finalmente respirar aliviado, não por sadismo, mas por ter a morte como um recomeço.

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